Não é de hoje que a preocupação com a escassez dos recursos naturais inquieta pensadores e estudiosos da questão ambiental no país. Inversamente ao que se pensa, o discurso preservacionista permeia nosso cotidiano desde o período imperial, onde já eram notórios os desleixos demasiados para com a natureza. Muitas foram as eminências que se aproveitaram de ensejos de livre expressão para criticar, recriminar ou admoestar atitudes de desrespeito e falta de sensibilidade no trato com o meio ambiente. Ainda em nossos dias, pesquisadores e estudiosos têm envidado esforços para corroborar o alerta da herança maldita que podemos estar preparando para nossos legatários; e a maior evidência dessa herança já é perceptível nas mudanças climáticas que tomam conta do planeta. Todavia, nem esse tipo de advertência tem sensibilizado nossos pares para uma mudança de paradigma. Ou seja, parece que o adulto de hoje mantém a imaturidade do adolescente de ontem.
Não há quem não admita que os tempos são outros: o calor convive fraternamente com o inverno e as baixas temperaturas mudam de época a cada ano. A expectativa da chegada do frio, com chuva miúda daquelas que se instala horas a fio sem trégua aos que não portassem um vistoso aparador de chuvas, dá lugar à fidúcia de amenidades climáticas. Os comerciantes de confecções laníferas frustram-se diante da repetida onda de calor que insiste em invadir os meses responsáveis pela ocorrência do frio.
Você também está apreensivo em relação ao nosso clima, não é verdade? Tenho pensado sempre que talvez no próximo ano tudo volte ao normal, com estações bem definidas, alternâncias de chuva e frio no inverno e seca e calor no verão. Mas, o que mais inquieta é que os anos passam e a angústia não arrefece; confirmando previsões lúgubres em relação ao clima do planeta. Por isso, fui buscar em passado recente de nossa história alguns testemunhos de eminências que já evidenciavam preocupação com as alterações de nosso clima planetário. Um dos primeiros depoimentos que se tem registro na história nacional e que convém aqui recordar é o do Patriarca da Independência, José Bonifácio (1763-1838), em representação à Assembléia Constituinte e Legislativa do Império no ano de 1823, demonstrando de forma profética sua preocupação em relação ao futuro, aquele que também foi um dos cientistas de maior renome do século XIX, com trabalhos na área da mineralogia, de reconhecimento internacional, alertava:
“Nossas preciosas matas vão desaparecendo, vítimas do fogo e do machado destruidor da ignorância e do egoísmo. Nossos montes e encostas vão-se escalvando diariamente, e com o andar do tempo faltarão as chuvas fecundantes que favoreçam a vegetação e alimentem nossas fontes e rios, sem o que o nosso belo Brasil, em menos de dois séculos, ficará reduzido aos páramos e desertos áridos da Líbia. Virá então este dia (dia terrível e fatal), em que a ultrajada natureza se ache vingada de tantos erros e crimes cometidos”1
Dedico, desde os anos noventa do século passado, horas de leitura a assuntos ambientais de cunho histórico, principalmente à literatura produzida por estudiosos como James Lovelock (1919 – ), Warren Dean (1932 – 1994), José Augusto Pádua (1959 – ) e José Augusto Drummond (1948 – ); e ao legado de pioneiros da denominada ala conservacionista ambiental, como o Padre Balduíno Rambo (1905 – 1961), Luiz Henrique Roessler (1896 – 1963), Augusto Cunha Carneiro (1922 – ) e José Antonio Lutzenberger (1926 – 2002). A maioria foi / é unânime no imperativo de uma nova postura em relação à utilização sustentável dos recursos naturais, sob pena de tornarmos nosso habitat extremamente hostil à raça humana.
Em breves citações gostaria de apontar o quanto esses autores demonstraram/demonstram preocupação com os efeitos perniciosos das atitudes do ser racional na utilização irracional desses recursos.
Já é bastante conhecida a Teoria de Gaia (Lovelock, 2001), postulando que a Terra é um grande ser vivo, e que neste momento inicia uma fase de restabelecimento, sem sequer tomar conhecimento do homo sapiens e de sua postura hegemônica em relação a outras espécies. Ainda Lovelock em A Vingança de Gaia2 rechaça qualquer atitude paliativa no trato dos problemas ambientais, afirmando de forma enfática e profética que, antes do fim deste século, bilhões de nós morreremos e os poucos casais férteis que sobreviverem estarão no Ártico, onde o clima continuará tolerável. Salienta que, ao não perceber que a Terra regula seu clima e sua composição, cometemos a trapalhada de tentar fazê-lo nós mesmos, agindo como se estivéssemos no comando; dessa maneira, nos condenamos ao pior estado de escravidão e, se escolhermos ser os guardiões da Terra, somos os responsáveis por manter a atmosfera, os oceanos e a superfície terrestre aptos para a vida.
Já o brasilianista Warren Dean, em seu A Ferro e Fogo3, descreve com muita propriedade os motivos que levaram à devastação da Mata Atlântica, remontando sua pesquisa ao propalado descobrimento do Brasil pelos ávidos colonizadores portugueses. A obra permite entender a rapidez da expropriação desta rica mata litorânea, onde o afã explorador levou-nos à ridícula salvaguarda de apenas 7% do volume original. Comprova ainda a busca incessante por madeiras que abasteceriam a fábrica da grande frota náutica em movimentação pelos mares da época, devastando grande parcela de nossas madeiras mais nobres. Entendemos também porque se chamavam madeiras de lei, aquelas encontradas e retiradas de alguns locais específicos do território brasileiro. Tais madeiras somente poderiam ser cortadas mediante autorização da coroa portuguesa, cuja preocupação com a crescente pirataria e o contrabando descontrolado para outras metrópoles suscitou a criação de legislação exclusiva para a extração na colônia.
Um Sopro de Destruição4, obra recente de José Augusto Pádua, relata a existência do discurso ambientalista desde os áureos tempos do Brasil Império, mesmo sem os adjetivos característicos de nossos dias. Conta ele como as idéias de pensadores importantes como Hume e Montesquieu, sobre a influência do clima nas instituições e nos costumes dos povos – idéias essas disseminadas na Europa em meados do século XVIII – desembarcaram nas colônias tropicais. Segundo Pádua, o conceito de que a destruição das florestas era responsável pelas secas e, no limite, pela desertificação, capturou a imaginação d
e vários observadores da vida colonial. A condenação do desflorestamento, com base nessa teoria, ganhou um novo patamar político e econômico. É nesse contexto que deve ser entendida, por exemplo, a advertência feita por José Bonifácio em 1823 sobre a falta das chuvas fecundantes, que ilustra a introdução deste ensaio.
Num pequeno manual de cunho didático, denominado O que é Ecologia5, Pádua e Lago abordam os principais aspectos da ecologia no país, mas não se olvidam de ressaltar a importância de um cuidado com a preservação dos recursos naturais em crescente escassez. O dogma do crescimento ilimitado, sem limites de produção material, estabelecendo uma visão reducionista que classifica os países em desenvolvidos e em desenvolvimento6, é outra contribuição trazida pela obra, assim como, a censura no uso de um critério como o do Produto Nacional Bruto7Manifesto Ecológico Brasileiro8 também adverte para o uso incorreto do PNB como medida do crescimento de uma nação.
Na perspectiva do resgate histórico, o professor José Augusto Drummond, do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília, possui vários artigos sobre história ambiental9, resgatando os muitos autores que se dedicaram à análise crítica das relações históricas entre a sociedade e o meio natural. Entre os brasileiros, cita ele a importância das obras de Gilberto Freyre (1900 – 1987) e Sérgio Buarque de Holanda (1900 – 1982); sendo o primeiro responsável por relevante texto em Nordeste (1985), quando evidencia como as expectativas, os valores e os atos dos portugueses produziram efeitos predatórios no quadro natural do chamado Nordeste úmido; e o segundo que trata com desenvoltura de variáveis ambientais como flora, fauna, topografia, solos e rios nos textos de Monções (1990) e de O Extremo Oeste (1986). Alberto Torres (1865 – 1917) também é destaque nessa plêiade de ensaístas ambientais citados pelo professor Drummond. Diz ele que, embora Torres não tenha se aprofundado no assunto, seu texto escrito no início do século passado influenciou sobremaneira a legislação ambiental brasileira, abordando a importância do uso racional dos recursos naturais e caracterizando a economia brasileira como uma consumidora voraz e imprevidente de recursos naturais.
A insipiente indústria brasileira das décadas de 1940 e 1950 foi responsável por um dos maiores problemas de saúde pública da época: a poluição indiscriminada dos recursos hídricos do país. Todos os resíduos provenientes da cadeia industrial tinham como destino certo as águas dos rios. Na região do Vale do Rio dos Sinos, o quadro não foi diferente; a indústria coureiro-calçadista e as atafonas10 se encarregaram de poluir as águas do rio que dava nome à região, contando ainda com a insensatez e aculturação da população ribeirinha, que descartava animais mortos – cavalos, bois, cães – empestando a mesma água que serviria para cozinhar, lavar e beber. Nesse ínterim, surge um dos grandes pioneiros da defesa ambiental brasileira, Henrique Luiz Roessler, que atuou como fiscal da pesca no Rio dos Sinos e foi delegado florestal do estado, fundando em 1955 a UPAN – União Protetora da Natureza. A biografia de Roessler está disponível em obra de resgate realizada por sua neta Maria Luiza11, onde é possível entender o contexto histórico em que se deu a colonização alemã, às margens do Rio dos Sinos, e de sua influência na realidade econômica e cultural, mas também ambiental, no vale do mesmo nome. A obra denominada o Homem do Rio – paisagens de uma paixão relata de forma simples a atuação de Roessler na preservação dos recursos naturais da região, enfrentando pescadores ilegais, madeireiros, industriais poluidores e caçadores clandestinos. Uma das passagens que chama atenção na obra é o capítulo que trata de uma perseguição que o ambientalista empreendia entre os municípios de Farroupilha e Bento Gonçalves e o jipe em que andava derrapou no saibro e capotou, caindo de uma ponte e esfacelando seu pé direito preso às ferragens. Mesmo sendo socorrido no Hospital de Bento Gonçalves, não houve alternativas que evitassem a amputação. Desse momento em diante, Roessler teria maior dificuldade para empreender de forma eficaz sua tarefa de defensor dos recursos naturais.
Nenhuma crítica ambiental alcançou tamanha repercussão do que as empreendidas pelo movimento ambientalista gaúcho em pleno regime militar, inaugurado na década de 1970 pela AGAPAN – Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural. Foram críticas à administração pública da capital gaúcha, como a poda indiscriminada de árvores, à poluição do Rio Guaíba pela empresa norueguesa Borregaard e à construção de usinas nucleares – estes últimos com total apoio do programa desenvolvimentista do governo Geisel -, e a utilização desnecessária de agrotóxicos nas lavouras do estado, que fizeram de José Antonio Lutzenberger12 o grande disseminador das idéias preservacionistas em nível nacional. A ele é creditada a criação do termo agrotóxico, em substituição ao defensivo agrícola, utilizado pela indústria química multinacional. Uma obra de sua autoria se constitui até hoje em manual de consulta obrigatória do movimento ambientalista brasileiro: Manifesto Ecológico Brasileiro – o fim do futuro. Foi escrito enquanto Lutz, como ficou mais conhecido depois de abraçar a causa ambiental, trabalhava como empreiteiro do governo estadual executando projeto de paisagismo no Parque Estadual da Guarita da cidade balneária de Torres, no Rio Grande do Sul. O manifesto teve ainda uma versão em espanhol para a Universidade de Los Andes da Venezuela, em 1978.
Fica evidente a preocupação de Lutzenberger com o futuro dos recursos naturais nessa abordagem em seu Manifesto Ecológico Brasileiro, escrito naquele ano de 1976:
“Iniciamos agora a conquista da Amazônia, última grande selva tropical do Globo. Queremos “integrá-la” e para isto partimos das mesmas atitudes de predação indiscriminada do colono de 1500, mas com tecnologias que exponenciam as ordens de magnitude dos estragos. Se o colono no Rio Grande do Sul levou cento e cinqüenta anos para, a machado e fogo, destruir cem mil quilômetros quadrados de floresta, na Amazônia, com o trator, a moto serra, o “defoliante” e os incêndios gigantescos de cem mil hectares ou mais, por vez, a eficiência é bem outra. Em cinco anos causamos mais estragos que nos quinhentos anos precedentes. As grandes empresas, muitas das quais estrangeiras e sem nenhuma tradição agropastoril, todas interessadas apenas no lucro próprio, sem nenhum embasamento em estudos ecol
ógicos, derrubam simplesmente a floresta, para substituí-la por plantações ou pastos, os quais não se sabe ainda quanto tempo vão durar”13.
Se conselho fosse bom a gente não dava, vendia!
Por inúmeras vezes, ouvi essa assertiva de meus pares na adolescência, sem imaginar que o tempo seria um dos maiores sábios que já conheci. Quantas recomendações foram de suma importância em determinados momentos de minha vida? E quanta carência, em momentos cruciais, daqueles alertas subestimados pelo meu descrédito? Aliás, tento hoje, em vão muitas vezes, sensibilizar minha filha adolescente de quão importante é ouvir a “voz da experiência” como forma de aprimoramento ou prevenção. Mas, tal como eu no passado, finge educadamente que me ouve e não perde a seqüência de mensagens que, de forma insistente, invadem a tela de seu computador.
Fico a imaginar por que não damos crédito aos avisos constantes em relação ao mau uso dos recursos naturais? Será que todos nós adultos estamos imbuídos de um espírito adolescente impregnado de inconseqüência, cujo arrependimento tardio poderá gerar algum senso de culpa? Ou será mais importante o futuro de curto prazo que construímos agora, do que aquele que estamos preparando para as próximas gerações, incluídos aí nossos filhos e nossos netos? É importante dar ouvidos a Lutzenberger quando afirma que “talvez sejamos em breve amaldiçoados como a geração que mais lixo produziu desde nossos primórdios”, com um agravante extremo: em plena Revolução da Informação não há desculpas nem pretextos para alegar que “não sabíamos” ou que “não fomos avisados”.
Autor: Jairo Brasil
Jairo Brasil é graduado e pós-graduado em Estudos Sociais pela UPIS de Brasília-DF e Mestrando em Educação pela UNISINOS de São Leopoldo-RS. jairobras@msn.com
Notas
1 PÁDUA, José Augusto, Um sopro de destruição: pensamento político e crítica ambiental no Brasil escravista, 1786-1888. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Edit. 2002.
2 Sobre este assunto tenho artigo publicado na Folha do Meio Ambiente, em sua edição nº165 de janeiro/fevereiro de 2006, que pode ser consultado em meio eletrônico no endereço www.folhadomeio.com.br.
3 DEAN, Warren, A ferro e fogo: a história e a devastação da mata atlântica. – São Paulo, Cia. Das Letras, 1996.
4 PÁDUA, op. cit.
5 LAGO, Antonio & PÁDUA, José Augusto, O que é ecologia. São Paulo: Brasiliense, 1985.
6 O termo mais utilizado na linguagem econômica atual, para países em vias de desenvolvimento, é “emergente”. Todavia, preocupado com a autenticidade do texto, mantive aqui o termo original utilizado pelo autor. Apesar de uma linguagem mundialmente aceita, todos sabemos o engodo que se esconde por detrás dessa denominação.
7 PNB ou também PIB – Produto Interno Bruto.
8 LUTZENBERGER, José Antonio, Fim do futuro? manifesto ecológico brasileiro. 5.ed. Porto Alegre: Movimento, 1980.
9 Dentre seus artigos escolhi um que relata varias fontes históricas desse contexto em nível internacional, inclusive: DRUMMOND, José Augusto, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol 4, n. 8, 1991- p.177-197, Historia ambiental: temas, fontes e linha de pesquisa.
10 Engenho de moer grãos, movido manualmente ou por cavalgaduras. Local onde costumeiramente se fabricava a farinha de mandioca entre as décadas de 1940 e 1960.
11 ROESSLER, Maria Luiza, O homem do rio: paisagens de uma paixão. Porto Alegre: AGE, 1999.
12 Para saber mais a respeito da vida e obra do ambientalista, sugiro uma consulta ao Jornal do Meio Ambiente em meio eletrônico, onde há artigo que sintetiza meu trabalho de conclusão de Pós-graduação em história ambiental no endereço www.jornaldomeioambiente.com.br. Também indico a leitura da biografia de José Lutzenberger, escrita pela jornalista Lílian Dreyer, com o título de Sinfonia Inacabada.
13 LUTZENBERGER, op. cit.