O futuro significa o repositório ilimitado de possibilidades. Por isso é imprevisível. Algumas delas se concretizam no presente e escorrem para o passado. Outras permanecem no mundo do possível e do virtual, e retornam ao vácuo quântico cheio de possibilidades. – Leonardo Boff
INTRODUÇÃO
A representação de que a implantação de um SGA (Sistema de Gestão Ambiental) como uma moderna ferramenta de gestão no sentido da melhoria dos processos industriais e organizacionais em geral, com vistas à otimização de serviços e produtos para atender demandas internacionais de consumo e melhorar a utilização de recursos naturais, bem como preservar o ambiente, merece algumas reflexões. A fim de iniciarmos nesse debate, trazemos aqui algumas questões iniciais. Até que ponto podemos verificar, de fato, possibilidade de vínculo entre melhorias de processos industriais ou empresariais e a preservação do ambiente natural e social a partir da implantação de um SGA? O que está faltando? O que precisa ser revisto?
Os dados apresentados na Conferência Sustentabilidade em Biocombustíveis, promovida pelo IEA – USP em 11/04/2008 apresentam situações preocupantes quanto ao futuro energético no mundo. Uma delas é quanto a utilização de certos recursos que, até bem pouco tempo, eram tratados como alimentos e hoje são tratados como fontes de energia. Como é o caso da cana e da soja para ficar apenas no Brasil. É preciso lembrar o que a monocultura fez nesse país durante os últimos séculos, desde a sua implantação. Porém, é impossível pensar em monocultura, desvinculada dos três pilares econômico-sociais que integram a nossa formação: escravidão-latifúndio-monocultura. Uma de suas características como modelo é o de ser o maior entrave ao desenvolvimento e à sustentabilidade de milhões de cidadãos, constituindo as bases econômico-sociais das nossas disparidades e contribuindo para gerar nesse país 0,5% dos extremamente ricos que controlam e fazem/aplicam as leis.
Outros dados apresentados pelos conferencistas preveem que o uso da terra no Brasil está assim determinado: 3 milhões de hec para produção de álcool, com perspectivas próximas de se chegar aos 7 milhões de hec., isso significa 1/3 do território nacional. Acrescente-se aí soja, pastagens, produção de alimentos, cidades, pessoas. O que teremos?
O solo, como um elemento chave nesse modelo, sempre esteve sob tutela do Estado e dos grandes fazendeiros e empresas que historicamente o apropriaram. Com um modelo de Estado paternalista, a única instituição perene que há nesse país chama-se latifúndio.
Partindo desses três aspectos estruturais, com raízes histórico-sociais-culturais em nossa formação é que iremos refletir as reais possibilidades de implementação de um SGA, como possibilidade de vínculo entre melhoria de processos industriais, organizacionais e a preservação do ambiente natural e social, considerando para esta análise a aplicação de alguns de seus instrumentos no contexto da história social e administrativa do Brasil.
Chamamos a atenção também para a noção de ambiente que aqui será relacionada à noção de organismo vivo que a este é necessariamente complementar, concordando com Roncayolo (1986), o ambiente é o conjunto de fatores ecológicos que exercem uma influência direta e significativa na vida dos organismos. Esse mesmo autor define um dos princípios gerais das relações de um organismo no ambiente:
“As relações que um organismo mantém com o ambiente são contínuas e indissociáveis: um organismo não pode furtar-se um só instante à ação do ambiente, o que não significa que cada fator atue ininterruptamente, dado que os fatores mais importantes são muitas vezes periódicos intermitentes.”
Então, a expressão ambiente natural e social não pode ser entendida separadamente, e é semelhante a ecossistema, por considerar que as relações são específicas, no sentido em que as diferentes espécies não são sensíveis aos mesmos fatores, ou não possuem os mesmos limiares de sensibilidade. E ao mesmo tempo, essas relações são recíprocas: o organismo modifica o meio físico que o cerca e as condições de vida de outras espécies e é por ele(s) modificado. E, exatamente a existência desta reciprocidade que está na base dos equilíbrios naturais, com a variedade dos fatores ambientais (fatores aleatórios) e sua desigual importância, conforme os grupos de seres vivos considerados, é que deve ser priorizada quando se tratar de recuperar ou preservar o ambiente, ou seja, o ecossistema.
I – REVISITANDO O CONTEÚDO
Os estudos realizados no curso deixam transparecer que os SGA existem para prover às organizações formas de gerenciar todos os seus aspectos e impactos ambientais mais significativos. E para sua implementação inicial se prevê a identificação e priorização desses aspectos e impactos, desenhando, em seguida um sistema que busca melhoria contínua, baseado no controle e/ou mitigação desses impactos.
Segundo a Norma NBR 14001, o SGA é definido como a parte de sistema de gestão da organização que inclui estrutura organizacional, atividades de planejamento, responsabilidades, práticas, procedimentos, processos e recursos para desenvolver, implementar, atingir, analisar criticamente e manter a política ambiental de uma determinada organização. Os SGA colaboram assim, no planejamento das atividades de uma determinada organização visando ou eliminando os impactos ao ambiente por meio de ações preventivas ou medidas mitigadoras. Os SGA não são obrigatórios, contudo o comércio internacional vem exigindo cada vez mais a certificação formal dos fornecedores e a implantação de um SGA irá facilitar a obtenção dessa certificação pela organização.
A fim de se institucionalizar a função GA (Gestão Ambiental) em uma organização, é necessário a esta preencher alguns requisitos, tais como:
- Definir uma política ambiental (PA) e garantir compromissos com um SGA;
- Formular um plano que satisfaça e realiza sua PA;
- Desenvolver entre seus membros e parceiros conscientização, participação, capacitação e mecanismos de suportes necessários com objetivos e metas a cumprir;
- Monitorar, mensurar e avaliar seu desempenho ambiental e implementar medidas destinadas a sua otimização constante;
- Inspecionar e avaliar continuamente cada fase ou procedimento do seu SGA.
Esses requisitos pressupõem que cada indivíduo, ente, pessoas física ou jurídica vinculada a esta organização na implantação de um SGA deverá fazer sua parte como responsável direto ou indiretamente com as atividades de preservação ambiental. Nesse sentido, os SGA demandam equipes multidisciplinares e requerem o envolvimento completo da alta administração, dos funcionários diretos, dos analistas internos e externos, dos fornecedores, clientes, público prioritário, equipe técnica multidisciplinar, etc no ótimo desenvolvimento dos procedimentos.
Os instrumentos que compõem um SGA objetivam melhorar a qualidade ambiental bem como o processo decisório e são aplicados a todas as fases da empreitada, podendo ser de natureza: preventiva, corretiva, de remediação e pró-ativos, dependendo da fase em que são implementados como requisitos. Destacam-se os seguintes instrumentos:
EIA – Estudos de Impacto Ambiental;
AIA – Avaliação de impactos ambiental e RIMA – relatório de impacto ambiental;
AA – Auditoria Ambiental;
CN – Capital Natural;
CA – Contabilidade Ambiental.
Os SGA acontecem por interferência de normas internacionais e de normas de grandes conglomerados, ou por exigência de clientes. As normas da série ISO 14000 são as mais utilizadas e, em especial a norma ISO14001 abre novos caminhos no mercado internacional. Essas normas são de adesão voluntária e podem ser aplicadas a qualquer tipo ou parte da organização. No Brasil, a Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT – credencia as seguintes normas dessa série para orientação dos SGA:
NBR 14001 – fornece as diretrizes para as organizações determinarem as políticas ambientais a serem adotadas, bem como contém os requisitos a serem auditados para fins de certificação/registro e/ ou autodeclaração. Todos os requisitos desta norma aplicam-se a qualquer SGA, mas sua implantação não oferece garantia satisfatória a todos que a utilizam.
NBR 14004 – fornece às organizações as diretrizes para iniciar, manter e aprimorar um SGA e estabelece princípios que servirão de orientação aos responsáveis na execução do seu gerenciamento.
NBR 14010 – estabelece os princípios a serem aplicados nas auditorias e recomenda auditoria baseada em objetivos definidos.
NBR 14011 – estabelece os procedimentos que conduzirão os trabalhos de auditoria em todos os tipos de organização.
NBR 14012 – estabelece os requisitos da qualificação do auditor e sua experiência profissional.
As normas da série ISO, que tratam do desempenho ambiental mundial, bem como o Sistema Comunitário de Ecogestão, decorrentes, no Brasil, do regulamento CEE 1836/93 são instrumentos prioritários na orientação da implantação de SGA e se constituem em suportes voluntários de adesão que possibilitam a uma determinada organização evidenciar a credibilidade do seu SGA e do seu desempenho ambiental. Ao promover a concepção, produção, comercialização, utilização de produtos com impacto ambiental reduzido e informar ao consumidor sobre os impactos do produto no ambiente, essas normas se aplicam aos produtos em geral, independentemente de serem locais ou importados. Excluem-se as bebidas, produtos alimentares, farmacêuticos e substâncias perigosas, que têm outros procedimentos.
Outro principal uso das normas ISO é o fornecimento de certificação junto a uma terceira entidade, para a qual a organização se candidata. Para o Sistema Comunitário de Autogestão, o objetivo é candidatar-se ao rótulo ecológico para produtos comercializáveis. Não há exigência internacional para as organizações alcançarem a certificação, mas isso não significa que não há pressão. As empresas associadas à poluição estão entre as principais a buscar a certificação.
Tal certificação tem como característica não preconizar exigências absolutas no sentido do desempenho ambiental, busca antes, um compromisso, consolidado na política ambiental da empresa, de cumprir e estabelecer legislação e regulamentos para atender ao seu contexto, realizando programas de melhorias contínuas. Em relação a isso, as normas da série 14000 são mais completas do que as NBR ISO 9000 para sistema de qualidade. Pois, enquanto os SG (sistemas de gestão) de qualidade tratam das necessidades dos clientes, os SGA atendem às necessidades de vasto conjunto de partes interessadas e às crescentes necessidades da sociedade sobre questões ambientais.
A GA abrange uma vasta gama de questões, inclusive aquelas com implicações estratégicas e competitivas. E para atingir os objetivos ambientais, convém que o SGA estimule às organizações a considerarem a implementação da melhor tecnologia disponível, quando apropriado e economicamente exequível. Um SGA provê ordenamento e consistência para que as organizações abordem suas preocupações ambientais, através da alocação de recursos, definição de responsabilidades e avaliação contínua de práticas, procedimentos e processos. Daí que é essencial para capacitar uma organização, antecipar e atender a seus objetivos ambientais e assegurar o contínuo cumprimento das exigências nacionais e/ou internacionais as seguintes recomendações:
- O planejamento da GA integrado ao planejamento estratégico da organização;
- Plano estratégico dinâmico e revisado regularmente para refletir as modificações dos objetivos e metas das organizações;
- Conhecimentos e habilidades necessárias identificadas e consideradas na seleção, recrutamento, treinamento, desenvolvimento de habilidades e educação contínua do pessoal;
- Auditorias do SGA periódicas para determinar a conformidade de sistema no qual foi planejado e para verificar se vem sendo adequadamente implementado e mantido;
- O responsável pela auditoria, a realize de forma objetiva e impessoal.
Nesse contexto a GA organizacional tem se tornado fator de competitividade entre as organizações quando se trata de abocanhar as melhores fatias impostas pelo mercado. Por conseguinte, os SGA vem se tornando um instrumento importantíssimo de cunho ativador dessa competição.
II – SGA E OS DILEMAS NA SUA IMPLEMENTAÇÃO NO CONTEXTO HISTÓRICO DA ADMINISTRAÇÃO NACIONAL
Pelo exposto acima na breve síntese do que se estudou durante o curso de Gestão Ambiental, percebe-se que estamos diante de pelo menos dois dilemas quando se trata de implementação de um SGA em organizações brasileiras e/ ou no Brasil. Inicialmente, um dilema teórico-metodológico no qual se percebe uma confusão na aplicação de pelo menos dois importantes instrumentos de controle e a realidade onde se inserem: a auditoria e o licenciamento ambientais. A não consideração destes instrumentos como inseridos em um processo histórico administrativo, contextualizado política e socialmente no Brasil, pode trazer equívocos na proposição e implantação de um SGA.
Ao mesmo tempo, um dilema político-social aí inerente, desconsidera aspectos de contradições sócio-político-históricas na prática de implementação desses instrumentos. Daí, como garantir sua efetividade/eficácia? Como se prever a interação com outros atores sociais e comunitários e como buscar essa participação? Como estabelecer uma educação ambiental interativa, eqüitativa, participativa, popular e pública nesse contexto?
Sem a pretensão aqui de dar respostas a todas essas e a outras questões, até por que elas não se dão, se constroem em espaços mais amplos, e demandam outros estudos, outras parcerias, iremos levantar alguns aspectos sócio-históricos, nos quais se enraízam essas questões na esperança de contribuir para ampliar o debate.
Inicialmente, vamos pensar na dinâmica teórico-metodológicos como uma das faces desses dilemas, levando em conta como está dada a proposta de implantação da Auditoria e do Licenciamento ambiental nas organizações percebendo estes elementos no contexto maior da história administrativa do Brasil, a fim de mobilizar aí outras implicações e vínculos.
Em seguida, iremos refletir, como outra face dos dilemas, a emergência das questões ambientais no contexto contemporâneo das reformas do Estado Moderno, considerando como marco referencial a crise do petróleo em 1973 e a Conferência de Estocolmo de 1972. Tentaremos analisar como o Estado Nacional e sua face técnico-burocrática vai se contrapondo às necessidades em se garantir a vida, os ecossistemas, as sociedades, ora se eximindo de responsabilidades, ora tentando estabelecer outros pactos, em especial com uma elite corporativa-financeira e contribuindo para gestar paradigmas econômicos que tem no consumismo e na competitividade duas perigosas armadilhas tanto polítca quanto social ecessidadesemar socluças marchinhas eleitoreirasdominadoresa apropriaçactos. ora negando tais.
Finalmente, trazemos uma breve reflexão sobre a ética como um possível retorno do cidadão ao debate na sociedade, a fim de repensarmos novas possibilidades para um SGA verdadeiro e justo socialmente.
2.1 – Dilema teórico-metodológico – a contextualização de alguns instrumentos de controle de GA
Há um entendimento de que para se fazer auditoria basta “seguir um roteiro assim como qualquer outra auditoria” (Denise Paske, txt virtual, mod. IV) . Ou seja, as normas estão aí, as legislações estão dadas, agora é “seguir o roteiro”. Não estou levantando questão de negatividade quanto ao cumprimento da lei. Não é isso. Estaria sendo leviana, se assim o fizesse. Acredito e defendo que as leis tem que ser cumpridas e bem aplicadas. Mas, só isso não basta. Apenas fazer e aplicar leis; não é suficiente. Até porque, no Brasil, sabemos que a velocidade com que as leis são feitas e aplicadas pode ser secular.
No que se refere ao licenciamento, há também o entendimento de que se trata de mais um processo técnico-administrativo, ou dependente de política pública, mas é preciso considerar esse procedimento extremamente técnico-burocrático inserido em nossa cultura patrimonialista secular, na qual a apropriação da coisa pública em benefício de grupos privados é que prevalece.
O sistema de licenciamento das atividades poluidoras – SLAP – que diz respeito ao licenciamento ambiental a partir do controle das atividades poluidoras, instituído pelo Decreto 1633/77 e depois aperfeiçoadas na Lei Federal 6938/81 que inseriu o licenciamento dentre os instrumentos de Política Nacional do Meio Ambiente – PNMA – portanto uma política pública, tem o mesmo caráter de lei pela lei e é ainda uma orientação confusa, intimidadora e excessivamente técnico-burocrática uma vez que, existe e quase nunca é mencionada sua obrigatoriedade em todo o território nacional.
Temos de um lado o “seguir a lei pela lei”, o tecnicismo-burocrático e de outro um contexto cultural onde prevalece a apropriação da coisa pública como contextualização para a implementação dos principais instrumentos de controle dos SGA, bem como de políticas públicas ambientais. O que nos parece estranho nesse modelo é o fato de não se fazer uma reflexão acerca dessa relação e de suas falhas como modelo teórico-metodológico, tendo em vista principalmente o contexto da história da administração brasileira, no qual se inserem esses instrumentos.
O que representam de fato esses instrumentos nesse contexto? O que é a legislação ambiental no Brasil, a quem está de fato beneficiando? Para que e para quem está servindo? Como e por que as empresas são, em geral, beneficiadas em se tratando de impunidades? São questões que vão se somando e que precisam ser respondidas pelos profissionais, organizações da sociedade civil e órgãos competentes.
Não há como negar que a CF (Constituição Federal) de 1988 mudou profundamente o sistema de competências ambientais, principalmente colocando-o como sendo legislado em três planos: federal, estadual e municipal. Segundo Machado (1996, cap 1) no que se refere às novas competências dos estados, estas são referentes a produção e consumo; responsabilidades por danos ambientais; criação, funcionamento e processo do juizado de pequenas causas; procedimentos em matéria processual: assistência jurídica e defensoria pública, com finalidade de amparar e patrocinar pessoas e associações na proteção do ambiente, do consumidor e do patrimônio cultural. Essa Constituição demonstra que, pela primeira vez no país, conseguimos construir algo bem mais próximo das reais necessidades sociais, com um pouco mais de amplitude democrática e responsabilidades públicas.
Entretanto, nossas raízes histórico-culturais são bem mais profundas do que a década de 80. A proposta dessa reflexão não é justificar nossas mazelas e impropriedades na condução das questões ambientais, espero ter esclarecido qual é esta na introdução deste artigo.
Na história administrativa brasileira percebe-se alguns fatores fundantes e decisivos. Um deles é o modelo de administração implantado pelos portugueses e que seguiu tendo pouquíssimas críticas e modificações por parte da elite nacional nos anos que se seguiram. Tal modelo, baseado no tripé: escravidão-latifúndio-monocultura ensinou-nos muitas de nossas distorções culturais, contribui para muitos dos nossos entraves na educação e gerou estagnação político-administrativo. Outro fator, decorrente deste, é a racionalização do trabalho e a eficiência, como modelo administrativo norte-americano implantado no início do século XX pelas primeiras reformas políticas para aumento da produtividade e que não sofre grandes modificações nas décadas seguintes
Durante cerca de 300 anos fomos colônia extrativista de Portugal, depois por quase 100 anos fomos colônia consumista da Inglaterra e nos últimos decênios da nossa história, seguimos sendo colônia extrativista e consumista da Europa e dos EUA. Nesse contexto de dominação, formou-se uma elite nacional tão exploradora e colonizadora política e economicamente quanto pouco diferente das elites externas e seus projetos dominadores. Assim, o modelo de Estado e a cultura de administração pública implantada desde os portugueses, se baseiam na apropriação daquilo que é público pelo privado. Ou, como diz Martins (mímeo): “A administração pública e o Estado brasileiro foram fundados sob a influência de um etos fortemente patrimonialista, presente na herança cultural lusitana”.
E esse etos ainda se faz presente na maneira de se elaborar as leis, na forma como pensamos nossos sistemas políticos, educacionais, de saúde, de gestão ambiental, etc. Haja vista a busca da excelência burocrática na administração pública que está culturalmente associada com a exclusão na política. Haja vista todas as formas de exclusão que conhecemos nesse país.
Segundo Faoro (1984) no Brasil português a burocracia se tornou o ideal da vadiagem paga, na qual prevalecia o paternalismo e o nepotismo, cujos critérios de seleção oscilavam entre o status, o parentesco e o favoritismo. Ou seja, tudo o que presenciamos hoje pouco mais de 500 anos depois nas relações internas e externas das atuais instituições públicas, privatizadas ao som de marchinhas eleitoreiras.
A trajetória iniciada no governo de Vargas de modernização da administração pública brasileira e a tentativa de substituir o modelo patrimonialista pelo burocrático, pouco alterou as bases desse etos. Tentou-se consolidar uma burocracia, racionalizando-se funcionalmente a adiminstração à revelia da política e à custa da democracia. O que restou ao final, foi a dicotomia entre política e administração.
O Estado forte implantado no período de ditadura militar ratificou a racionalidade funcional do governo Vargas, acrescida de uma tecnoestrutura de sustentação do regime autoritário, cujo viés consistia em: planejamento econômico e crescimento desordenado da burocracia governamental indireta. Permanecendo a influência patrimonialista tecnocrática.
No momento da redemocratização, nos anos 80, o patrimonialismo deu lugar ao modelo político-corporativo, baseado nas alianças partidárias, revelando nossos resquícios mais antigos na prática fisiológica em busca de recursos e influencia sobre a administração pública.
Sabendo que as políticas públicas de GA devem ter como objetivo não somente a gestão de recursos para a proteção ambiental, mas principalmente servir de orientação na solução de conflitos, e de fato trazer soluções que beneficiem o coletivo da sociedade envolvida e a conservação dos recursos, poderíamos refazer nossas questões. Passaríamos a perguntar, considerando nossa história administrativa, na qual de um lado temos um sincretismo burocrático-patrimonialista e de outro uma modernização dissociativa, onde a construção democrática é obstaculizada pela política, e a ética da apropriação da coisa pública e do Estado doravante se manifestam. Como pensar um SGA, em que seus instrumentos de controle, a auditoria e o licenciamento sejam realmente imparciais, éticos e eficazes ao ecossistema? Ou será que teremos que mudar as perguntas: Qual auditoria e licenciamento ambiental se querem? A quem irá beneficiar e para que?
2.2 – Dilema político-social – paradigma ambiental e reforma do Estado, que pacto é esse?
É oportuno observarmos que a emergência do paradigma ambiental e socialmente insustentável coincide com as primeiras conferências de reforma administrativa do Estado Nacional, sob a égide das Nações Unidas. Foi a partir da crise do petróleo em 1973 que entrou em xeque o modelo de Estado técnico-burocrático até então conhecido no mundo.
Um ano antes, em 1972, havia sido realizada a Conferência das Nações Unidas sobre o Homem e o Meio Ambiente, em Estocolmo (Suécia). Foi um encontro entre chefes de Estado para debater as questões sobre o meio ambiente e o desenvolvimento.
O alerta ao mundo se deu assim em meio a medos de perda do poder pelas nações ricas e a oportunidades de se emergir pelas nações pobres. O traço comum entre ricos e pobres, nesse contexto, é que em nenhum dos lados a sociedade, os cidadãos foram, sequer, ouvidos. A crise econômica mundial a partir dos anos 70, serviu assim mais para detonar do que para alertar o mundo quanto aos riscos de esgotamentos dos recursos naturais não renováveis. Pois a corrida competitiva que se desenrolou a partie daí colocou, nos últimos anos, outras questões mais urgentes para os governantes do mundo inteiro se preocuparem. No começo dos anos 80 a discussão desenvolvimento X meio ambiente ganhou outros atores sociais, como movimentos e organizações da sociedade civil. E uma série de ações estatais são apresentadas ao mundo a partir daí. Em 1983, a Assembléia Geral da ONU indicou a então primeira-ministra da Noruega, Gro Harlem Brundtland, para presidir uma comissão encarregada de estudar esse tema. Em 1987, foi publicado pela Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (CMMAD) da ONU um estudo denominado Nosso Futuro Comum, mais conhecido como Relatório Brundtland, que defende o crescimento para todos e busca um equilíbrio entre as posições antagônicas surgidas na Estocolmo-72. Tentando conciliar o desenvolvimento e a preservação do meio ambiente, surgindo pela primeira vez a concepção de desenvolvimento sustentável.
Na Conferência Rio-92, quando foi aprovada a Agenda21, estabelecendo um pacto pela mudança do padrão de desenvolvimento global para o século XXI, consolida-se também a idéia de que o desenvolvimento e a conservação do meio ambiente devem constituir um binômio indissolúvel que promova ruptura no modelo de crescimento econômico.
Ao mesmo tempo, a reforma do Estado Moderno e do seu instrumento tecnicista-burocrático, a administração pública, tornou-se um dos principais temas nesse mesmo contexto, onde grandes conglomerados financeiros passam a ser seu porta-voz, realizando, às avessas, aquilo que havia sido considerado sua missão primordial durante séculos: controlar e equanimizar as instituições, corroborando para o bem estar coletivo.
Na visão de Fernando Abrucio (mímeo) isso significou que mundialmente esfacelava-se um Estado que tinha três dimensões: econômica keynesiana, social welfare state e administrativa burocrático weberiano. Portanto, um modelo de Estado excessivamente burocrático não apenas na economia, como também na política e nas questões sociais. Ao mesmo tempo, a esta revisão do papel do Estado, passará a vigorar também a urgência de um novo pacto econômico-político-social, no e para o qual está em jogo a sobrevivência no e do planeta, bem como dos diferentes ecossistemas.Esse vazio logo passou a ser ocupado pelas grandes corporações econômicas, que colaboraram para iniciar as primeiras críticas à não transparência e ineficiência da burocracia pública.
Na década de 80, as contínuas críticas quanto aos problemas da falta de preparação gerencial do civil service, da excessiva hierarquização, da falta de contato entre os burocratas e a comunidade que serviam contribuíram para fortalecer ainda mais os detentores do poder mundial: o FMI e o BM. O enfraquecimento dos governos somado ao aumento de poder dos grandes grupos financeiros resultou na perda de parcela significativa do poder dos Estados de ditar políticas econômicas.
Ironicamente, uma das corporações defensoras do discurso do desenvolvimento sustentável é o Banco Mundial (BM), que em 1997, anunciou medidas urgentes apontando para o desenvolvimento sustentável com equilíbrio entre tecnologia e ambiente, de maneira a preservar a qualidade de vida e o bem estar da sociedade como um todo, levando em conta sustentabilidade futura e justiça social. Entretanto, do discurso à prática traçou-se um longo caminho cheio de atropelos e interesses divergentes, e, em geral, quem perdeu foram os povos, os governos e a sociedade como um todo. Os EUA foram o palco preferencial da maioria dessas críticas ao modelo administrativo público vigente. E não por acaso, como solução, surgiram importantes instrumentos de gestão orçamentária, tornando as finanças públicas mais vinculadas a objetivos do que a regras rígidas do serviço público. Durante ainda os anos 80, o maior ataque veio em função do clima intelectual e político reinante e do esfacelamento do aparato estatal estruturado no pós-guerra. Nesse processo, estavam dadas as bases para implantação do modelo gerencial importado da iniciativa privada, que passa a ser o fio condutor das reformas. A Grã-Bretanha foi o laboratório dessas técnicas gerenciais aplicadas ao setor público. Mas, tanto nos EUA quanto na Grã-Bretanha a republicanização do poder público tornou-se bandeira social, exigida por seus cidadãos.
A dupla face do discurso do desmonte político-administrativo fica assim revelada, mostrando o quanto esse é enganoso e perigoso.
No Brasil, não é necessário dizer todos os desastres gerados por esse modelo gerencial e o discurso do desmonte, citaremos alguns: o desemprego, a privatização de importantes serviços e empresas públicas, a corrida consumista como panis et circense da população em geral, a desqualificação dos serviços públicos, dentre eles a educação, a saúde, e outros que já eram questionáveis, a desqualificação profissional, o aumento da pobreza, da violência e da injustiça social.
No modelo gerencial os funcionários públicos dependem de avaliação dos clientes para obter avanço profissional e manter seus empregos. O problema da equidade na prestação dos serviços públicos, pode se agravar no caso de competição entre organizações sociais. Bem como, obstáculos geográficos e financeiros se tornam cada vez mais difíceis de se transpor.
Passamos a viver, de fato, uma era de escassez de recursos, onde uma lógica fiscal se preocupa em controlar os imputs e outputs desse sistema e outra lógica gerencial busca aumento de eficiência e efetividade para atingirem objetivos e obter melhores outputs. Lembra-nos um cãozinho correndo atrás de seu próprio rabo.
Ora, podemos perguntar: como a gestão ambiental se insere nessa lógica, principalmente tendo a norma ISO14001 como atestado básico? O que vem a ser um SGA nesse contexto? Que compromissos não estão sendo assumidos, de fato? Por quê? A quem serve a não obrigatoriedade de um SGA? Até quando o comércio dará a tônica das discussões nessa área? E a Carta da Terra? Ou os compromissos do milênio, por que não estão no debate? Qual GA está se institucionalizando?
A urgência em se refletir o modelo de SGA, tendo em vista o exposto acima se faz no sentido de pensar como inserir esses elementos no debate, sem deixar de fora a reflexão do atual modelo sincretista burocrático-patrimonialista da administração pública brasileira aliada a uma modernização internacionalmente dissociativa onde a construção democrática é impedida pela política e onde imperam as leis do mercado. Como implementar as políticas sociais de educação ambiental e “sustentabilidade da vida” e dos recursos naturais como partes integrantes de um SGA? E ainda, como solucionar conflitos ambientais, que não são poucos, tendo em vista justiça e equidade social como garantias de eficácia para um SGA? Finalmente, como pensar em um SGA participativo, integrado, ético-responsável, socialmente justo, tanto no seu planejamento, quanto nos procedimentos, práticas e processos?
III- CONSIDERAÇÕES FINAIS
O que se percebe nessa dupla face do discurso econômico, é que se de um lado parece progressista e humano, ao se dizer preocupado com o futuro da humanidade. De outro lado, realiza aquilo que é de sua natureza fazer: competição, injustiça social, depredação de recursos, etc, encoberto sob o véu da ineficiência do poder público. Enquanto sociedade organizada, movimentos sociais comprometidos com outra lógica de desenvolvimento humanamente sustentável é preciso não se iludir na implementação desses instrumentos e de suas políticas ou programas e buscar formas mais inovadoras de pensar, articulando os muitos problemas ecológico-sociais, tendo como referência maior a terra e a comunidade de vida, construindo outros paradigmas de responsabilidades coletivas e do cuidado com os seres, como afirma Boff (2008.)
A empresa que não vê outro papel a não ser bons resultados, boa imagem, bons lucros não consegue realizar verdadeiramente a necessidade de preservar os ecossistemas e a vida e sua real responsabilidade social se traduz na condução dos negócios da organização. Ser ético significa pensar e agir de acordo com a idéia de bem. Portanto, concorrência, injustiça social, violência, segregação de todo tipo aproveitamento das melhores oportunidades, competitividade, clientes cada vez mais exigentes e menos pacientes são realidades incompatíveis com ser ou pensar em ser ético. A ética determina que se aja com honestidade e sinceridade. É uma rigorosa avaliação sobre o que é o bem e o que é o mal. A ética questiona e teoriza sobre o que é justo e apropriado ao agir humano para a realização do bem, propondo caminhos para a realização do homem como ser racional. No âmbito da ética, a sede de responsabilidade pelos atos está na consciência, isso não quer dizer que os atos não possam ser avaliados. Sendo assim, não é suficiente criarmos códigos, convenções, relatórios, sistemas é preciso que se instale uma cultura ética dentro das organizações. É urgente Implementar uma “pedagogia da ética” com reflexos no respeito à dignidade dos participantes do processo produtivo, sem restrições.
Autora: Maria Lúcia de Azevedo Santos
BIBLIOGRAFIA BÁSICA:
CARVALHO, Isabel Cristina de Moura. Educação Ambiental: a formação do sujeito ecológico. São Paulo: Cortez, 2004.
MACHADO,Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 7ªed. São Paulo: Malheiros Editores, 1998.
SILVA, Francisco Teixeira da. História das Paisagens. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo. Domínios da História.Rio de Janeiro: Campos, 1997.
ABRUCIO, Fernando L. Os Avanços e Dilemas do modelo pós-burocrático: a reforma da administração à luz da experiência internacional recente – mímeo.
__________________. Reforma do Estado e a Administração Pública Gerencial. Mímeo
MARTINS, Humberto Falcão. A Ética do Patrimonialismo e a Modernização da Administração Pública Brasileira. EBAP/FGV-DF. Mímeo.
DUPAS, Gilberto. A Lógica Econômica e a Revisão do Welfare State: a urgência de um novo pacto. Mímeo.
BOFF, Leonardo. Homem: satã ou anjo bom? Rio de Janeiro: Record. 2008.
http://br.geocities.com/vpuccini/trabalho.html
Todos os textos e vídeos estudados no curso de Gestão ambiental, nos quatro módulos.